Algumas orientações básicas sobre a Eucaristia.





Tendo em vista a importância da celebração dos Sacramentos, a Santa Sé tem a Sagrada CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E A DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS, que regula como cada sacramento deve ser celebrado publicou a importantíssima Instrução “REDEMPTIONIS SACRAMENTUM”, aprovada pelo Papa João Paulo II, em 25 de março de 2004, sobre algumas coisas que se devem observar e evitar acerca da Santíssima Eucaristia. Separei aqui alguns itens iniciais; mas o importante é ler toda a Instrução:

[4.] Não há dúvida de que a reforma litúrgica do Concílio tem tido grandes vantagens para uma participação mais consciente, ativa e frutuosa dos fiéis no santo Sacrifício do altar». [João Paulo II, Carta Encíclica, Ecclesia de Eucharistia – EE n. 10]. Certamente, «não faltam sombras» [Sacrosanctum Concilium – SC, n. 48]. Assim, não se pode calar ante aos abusos, inclusive gravíssimos, contra a natureza da Liturgia e dos sacramentos, também contra a tradição e autoridade da Igreja, abusos que em nossos tempos, não raramente, prejudicam as Celebrações litúrgicas em diversos âmbitos eclesiais. Em alguns lugares, os abusos litúrgicos se têm convertido em um costume, no qual não se pode admitir e se deve terminar.

[5.] A observância das normas que têm sido promulgadas pela autoridade da Igreja, exige que concordem entre si pensamento e a voz, ações externas e a intenção do coração. A mera observância externa das normas, como resultado evidente, contraria a essência da sagrada Liturgia, com a que Cristo quer congregar a sua Igreja, e com ela formar «um só corpo e um só espírito». [1 Cor 12, 12-13; Ef 4, 4]. Por isto, a ação externa deve estar iluminada pela fé e a caridade, que nos unem com Cristo e nos unem aos outros, e suscitam nos outros a caridade com os pobres e necessitados. As palavras e os ritos litúrgicos são expressão fiel, amadurecida ao longo dos séculos, dos sentimentos de Cristo, nos ensinando a ter os mesmos sentimentos que Ele; [Fil 2,5] conformando nosso pensamento com suas palavras, elevamos ao Senhor nosso coração. Quando se fala nesta Instrução, intenciona-se conduzir a esta conformação de nossos sentimentos com os sentimentos de Cristo, expressados nas palavras e ritos da Liturgia.

[6.] Os abusos, sem dúvida, «contribuem para obscurecer a reta fé e a doutrina católica sobre este admirável Sacramento» [EE,10]. De esta forma, também se impede que possam «os fiéis reviver de algum modo a experiência dos discípulos de Emaús: Então se lhes abriram os olhos e o reconheceram» [EE,6]. Convém que todos os fiéis tenham e revivam aqueles sentimentos que receberam pela paixão salvadora do Filho Unigênito, que manifesta a majestade de Deus, já que estão ante à força, à divindade e ao esplendor da bondade de Deus [Cf. Rom 1, 20], especialmente presente no sacramento da Eucaristia [Lc 24, 31].

[7.] Não é estranho que os abusos tenham sua origem em um falso conceito de liberdade. Posto que Deus nos tem concedido, em Cristo, não uma falsa liberdade para fazer o que queremos, mas sim a liberdade para que possamos realizar o que é digno e justo. [Cf. João Paulo II, Carta Encíclica, Veritatis splendor – VE, n. 35]. Isto é válido não só para os preceitos que provém diretamente de Deus, mas sim também, de acordo com a valorização conveniente de cada norma, para as leis promulgadas pela Igreja. Por isso, todos devem se ajustar às disposições estabelecidas pela legítima autoridade eclesiástica.

[8.] Além disso, constata-se, com grande tristeza, a existência de «iniciativas ecumênicas que, ainda sendo generosas em seu intenção, transgridem com práticas eucarísticas contrárias à disciplina com a qual a Igreja expressa sua fé». Sem dúvida, «a Eucaristia é o um dom demasiado grande para admitir ambiguidades e reduções». Por isso, convém corrigir algumas coisas e defini-las com precisão, para que também com isto «a Eucaristia siga resplandecendo com todo o esplendor de seu mistério» [EE,10].

[9.] Finalmente, os abusos se fundamentam com frequência na ignorância, já que quase sempre se rejeita aquilo que não se compreende seu sentido mais profundo e sua Antiguidade. Por isso, enraizadas na Sagrada Escritura, «as preces, orações e hinos litúrgicos estão penetrados em seu espírito e dela recebem seu significado nas ações e sinais» [SC n. 24]. No que se refere aos sinais visíveis, «usados na sagrada Liturgia e que foram eleitos por Cristo ou pela Igreja para significar as realidades divinas invisíveis» [Idem 23]. Justamente, a estrutura e a forma das Celebrações sagradas de acordo com cada um dos Ritos, seja da tradição do Oriente seja da Ocidente, concordam com a Igreja Universal e com os costumes universalmente aceitos pela constante tradição apostólica [Instr., Varietates legitimae – VL, n. 26], que a Igreja entrega, com solicitude e fidelidade, às gerações futuras. Tudo isto é sabiamente guardado e protegido pelas normas litúrgicas.



[10.] A mesma Igreja não tem nenhum poderio sobre aquilo que tem sido estabelecido por Cristo, e que constitui a parte imutável da Liturgia [S C, n. 21]. Posto que, caso seja rompido este vínculo que os sacramentos têm com o mesmo Cristo que os tem instituído e com os acontecimentos que a Igreja tem sido fundada [Instr., Varietates legitimae, n. 25] nada seria vantajoso aos fiéis, mas sim poderia ser gravemente danoso. De fato, a sagrada Liturgia está estreitamente ligada com os princípios doutrinais [Cf. Pio XII, Carta Encíclica, Mediator Dei], por que o uso de textos e ritos que não têm sido aprovados leva a uma diminuição ou desaparecimento do nexo necessário entre a lex orandi e a lex credendi.[ID]

[11.] O Mistério da Eucaristia é demasiado grande «para que alguém possa permitir tratá-lo ao seu arbítrio pessoal, pois não respeitaria nem seu caráter sagrado, nem sua dimensão universal»[EE,52]. Quem age contra isto, cedendo às suas próprias inspirações, embora seja sacerdote, atenta contra a unidade substancial do Rito romano, que se deve cuidar com decisão [SC nn. 4, 38], e realiza ações que, de nenhum modo, correspondem com a fome e a sede do Deus Vivo, que o povo de nossos tempos experimenta, nem a um autêntico zelo pastoral, nem serve à adequada renovação litúrgica, mas sim defrauda o patrimônio e a herança dos fiéis com atos arbitrários que não beneficiam a verdadeira renovação [Cf. João Paulo II, Ecclesia in Europa, n. 72], e sim lesionam o verdadeiro direito dos fiéis à ação litúrgica, à expressão da vida da Igreja, de acordo com sua tradição e disciplina. Além disso, introduzem na mesma celebração da Eucaristia elementos de discórdia e de deformação, quando ela tem, por sua própria natureza e de forma eminente, de significar e de realizar admiravelmente a Comunhão com a vida divina e a unidade do povo de Deus [EE,23]. Estes atos arbitrários causam incerteza na doutrina, dúvida e escândalo para o povo de Deus e, quase inevitavelmente, uma violenta repugnância que confunde e aflige com força a muitos fiéis em nossos tempos, em que freqüentemente a vida cristã sofre o ambiente, muito difícil, da «secularização» [ID].

[12.] Por outra parte, todos os fiéis cristãos gozam do direito de celebrar uma liturgia verdadeira, especialmente a celebração da santa Missa, que seja tal como a Igreja tem querido e estabelecido, como está prescrito nos livros litúrgicos e nas outras leis e normas. Além disso, o povo católico tem direito a que se celebre por ele, de forma íntegra, o santo Sacrifício da Missa, conforme toda a essência do Magistério da Igreja. Finalmente, a comunidade católica tem direito a que de tal modo se realize para ela a celebração da Santíssima Eucaristia, que apareça verdadeiramente como sacramento de unidade, excluindo absolutamente todos os defeitos e gestos que possam manifestar divisões e facções na Igreja [1 Cor 11, 17-34; EE [33].

[13.] Todas as normas e recomendações expostas nesta Instrução, de diversas maneiras, estão em conexão com o ofício da Igreja, a quem corresponde velar pela adequada e digna celebração deste grande mistério. Dos diversos graus com que cada uma das normas se unem com a norma suprema de todo o direito eclesiástico, que o cuidado para a salvação das almas, trata o último capítulo da presente Instrução [Código de Direito Canônico – CDC, c. 1752].

[14.] «A ordenação da sagrada Liturgia é da competência exclusiva da autoridade eclesiástica; esta reside na Sé apostólica e, na medida que determine a lei, no Bispo» [SC, n. 22].

[16.] Compete à Sé apostólica ordenar a sagrada Liturgia da Igreja universal, editar os livros litúrgicos, revisar suas traduções a línguas vernáculas e vigiar para que as normas litúrgicas, especialmente aquelas que regulam a celebração do santo Sacrifício da Missa, se cumpram fielmente em todas partes [CDC, c. 838 § 2.]

[18.] Os fiéis têm direito a que a autoridade eclesiástica regule a sagrada Liturgia de forma plena e eficaz, para que nunca seja considerada a liturgia como «propriedade privada, nem do celebrante, nem da comunidade em que se celebram os Mistérios» [EE n. 52].

 Prof. Felipe Aquino


PAPA FRANCISCO: "rezem por mim"! 


Como é do conhecimento geral o Representante de Jesus Cristo na Terra, tem sido alvo de ataques, ofensas, nunca vistas na Igreja Católica desde há vários séculos.
Todos nos devemos recordar do seu primeiro gesto, após a eleição, na janela da biblioteca do Vaticano na praça de S. Pedro: ajoelhou-se e pediu à multidão que rezasse por ele!
Este simples mas significativo gesto, mostrava o que poderíamos esperar do sucessor de Pedro: alegria, paz e humildade ao serviço do Povo de Deus.
À medida que os dias do seu pontificado iam decorrendo, confirmávamos nas suas palavras e, sobretudo, nas suas acções, que o nosso líder espiritual era diferente de todos os que o antecederam.
Poderemos perguntar: porquê esta diferença? Porquê a negação à ostentação, ao luxo, à formalidade, aos esquemas, às regras, etc? Porquê?
Se quisermos recorrer a uma comparação mundana, também encontramos diferenças quando uma empresa é gerida ou administrada por um "miúdo" recém licenciado ou colocado num lugar de chefia por uma "cunha", como muitas vezes e, infelizmente, acontece ou, se para o mesmo lugar, é escolhida uma pessoa com experiência feita, maturidade empresarial e outros atributos relevantes para a função. 
Jorge Bergoglio tem estes atributos! 

Do seminário a sacerdote ( sacerdote de rua e não de sacristia ), foi construindo a sua forma de ser e pensar, com os pés bem assentes na desejada prática cristã, sempre lutando contra ideologias, teorias discriminatórias onde não existia qualquer humanismo, muito menos práticas de acolhimento e  abraços fraternos. 

Sentiu na pele pressões, investigações com fundamentos ignóbeis e, como o futuro mostrou, perfeitamente, falsos! A sua experiência, fez dele um homem firme, determinado a continuar a viver o que nos "ensina" Jesus e que o Pe Zézinho resume no refrão do cântico "Amar como Jesus amou". 

Amar como Jesus amou / Sonhar como Jesus sonhou / Pensar como Jesus pensou / Viver como Jesus viveu! Sentir o que Jesus sentia / Sorrir como Jesus sorria / E ao chegar ao fim do dia eu sei que dormiria muito mais feliz!

Esta postura de vida tem incomodado muita gente! Gente que ainda vive na sombra dos tempos em que a hierarquia da Igreja Católica era o principal poder temporal. Reinos, reis, guerras, dependiam de um "sim" ou de uma negação papal! Acima de qualquer suspeita, governavam o Povo de Deus com regras temporais e ausentes de qualquer espiritualidade.

Assim continuámos até ao final do Concílio Ecuménico Vaticano II! E quando esperávamos que a fonte da inspiração que levou S. João XXIII a convocar este Concílio se espelhasse nos corações de todos os nossos pastores, ventos contrários sopraram fortes, com origem, assim penso, em "anticiclones" localizados em pleno Vaticano.

É triste constatarmos que, as grandes decisões deste importante evento, continuam sem aplicação prática! 
Um exemplo, apenas: embora sem as proibir, o Concílio desaconselhou a celebração das eucaristias em latim. Teimosamente, alguns sacerdotes tradicionalistas que pararam no tempo do Concílio Vaticano I, continuam a celebrar as santas missas numa língua que há muito tempo deixou de ser universal e compreensível pela grande maioria dos cristãos católicos. E é ainda mais triste quando, opositores do Papa Francisco como é o caso do Sr. Pe. Burke, celebrou há pouco mais de um mês na Igreja de S. Nicolau, em Lisboa, uma eucaristia em latim, segundo o rito de Pio X. 
O mesmo homem que, em Fátima, "passou" a missa  da canonização dos dois pastorinhos, a rezar o terço, em completa contradição "com o critério de uma participação activa, consciente e frutuosa que cada crente deve ter" como recomenda o Sacrossanto Concílio Vaticano II (1962-1965). 

É bom recordar que a combinação anticomunismo, orgulho étnico e ódio ao feminismo deste cardeal Burke, inspirou uma série de proeminentes figuras laicas conservadoras dos Estados Unidos como Pat Buchanan e outros intelectuais católicos como Steve Bannon que têm batalhado, incansavelmente, a favor das guerras americanas no médio oriente e no apoio aos republicanos sobre os mercados livres... Pergunto: qual a compatibilidade destes pensamentos com os princípios básicos do cristianismo? 
Retomando a dita celebração eucarística em Lisboa pelo Sr. Cardeal Burke, a mesma não teria sido possível sem autorização do Pároco: qualquer sacerdote que não pertença à diocese onde pretende celebrar uma eucaristia, necessita da autorização do responsável pela paróquia e, sendo o celebrante a pessoa supra indicada, teria sido do conhecimento do responsável pela Diocese. 
Em contrapartida, sacerdotes ligados à Renovação Carismática, NUNCA foram autorizados a celebrarem qualquer eucaristia numa igreja da Diocese de Lisboa. Recordo o Pe. Zézinho na década dos anos 70 ou, mais recentemente, o Pe. Marcelo Rossi das duas ou três vezes que esteve em Portugal, o falecido Pe. Leo, o Pe. Fábio de Melo da Comunidade Canção Nova e tantos outros cujos nomes me abstenho de indicar.

Diante dos comportamentos e das ideias personificadas pela ala pré Concílio Vaticano II, recordo parte do teor da Instrução “O Dom da Verdade”, publicada no início do pontificado de João Paulo II pela CDF ( Congregação da Doutrina da Fé), onde se explica que todos os católicos devem praticar a “submissão da vontade e do intelecto” aos ensinamentos do Papa, mesmo que não sejam infalíveis; e que os teólogos, mesmo que possam estar em desacordo e manifestá-lo aos seus superiores, nunca o devem fazer em público.

Na prática os quatro cardeais (Walter Brandmüller, Raymond L. Burke, Carlo Caffarra e Joachim Meisner) ao revelarem publicamente, as suas discordâncias com a "Amoris Laetitia" através do documento "Dubia", acabaram por violar a Instrução supra indicada.
Orienta-os o princípio dos fracos e incompetentes: "Dividir para reinar".  

Não é por acaso que o Papa Francisco, no final das suas partilhas, palestras ou noutros encontros, pede sempre: "rezem por mim".
E temos de rezar, irmãos! Muito, mesmo muito! 
Não só por ele mas por todos aqueles que, directa ou indirectamente, às claras da luz do dia ou escondidos no seu coração, não aceitam esta vida semelhante à que Jesus nos ensinou, como faz o Santo Padre, nem põem em prática os seus desafios: 
- aproveitarem as instalações dos mosteiros ou de outros imóveis para acolhimento dos necessitados;
- não prepararem os seminaristas para se tornarem sacerdotes ao serviço do Povo de Deus e não "meros funcionários administrativos";
- omissão ou mau aprofundamento sobre a espiritualidade;
- não aproveitarem as paróquias para realizarem seminários de efusão do Espírito Santo;
- prepararem, nas várias paróquias, grupos de acompanhamento aos casais recasados;
- etc ..........

Tudo isto, Jorge Bergóglio disse e fez!

Por esta Europa, perfeitamente moribunda, distante do Povo de Deus e das graças d'Ele emanadas (basta ver os seminaristas, a maior parte dos quais, perfeitamente alheados do sentir quotidiano), continuam a querer falar de Deus sem O conhecerem e sem O amarem! Como se pode amar alguém lendo, apenas, compêndios de folhas amareladas pelo passar dos anos? Como? Será que não aprenderam o primeiro Mandamento de Deus, o qual nos ensina: Amarás o SENHOR, teu Deus, com todo o coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças (Dt. 6,5). 
Verdade! O primeiro encontro com Deus, tem de ser, por Sua graça e para Sua glória, o amor de coração, eterno e incondicional, que nos é dado pelo dom da Fé!


O QUE FARIA O PAPA FRANCISCO NO SEU LUGAR?

Esta é a pergunta que deveria estar colada em letras garrafais em todas as sacristias do País: da igreja mais pequena ao Santuário de Fátima, passando pelos patriarcados e pela Conferência Episcopal Portuguesa!
Permita-me o leitor a exceção de começar este texto com uma história pessoal. Um dos meus filhos andava na catequese quando foi “convocado” para fazer a Primeira Comunhão, com os outros meninos da sua turma. Ficou, como todas as crianças de 9 anos, entusiasmado com a ideia, e preparou-se com um afinco inédito (e até surpreendente para mim) para o acontecimento: decorou todas as orações, preparou-se para a conversa da Primeira Confissão, convidou toda a família para o evento solene.
Na véspera da cerimónia, camisa branca engomada, vela do batismo recuperada e tudo a postos para o grande dia, estava ele a terminar o ensaio geral quando a catequista lhe diz que afinal não ia poder participar. Tinha havido uma confusão com a papelada e, como ele não tinha tido dois anos de catequese, afinal não podia comungar. Se não tivesse sido batizado, a coisa era diferente e poderia fazer logo tudo no mesmo dia. Assim nem pensar, ditavam as regras. Dito assim – a uma criança e na véspera –, depois de meses de preparação. O rapaz ficou genuinamente desolado, não queria acreditar. Ligou-nos em pranto.
Fui falar com o pároco e com a catequista e expliquei que as regras não fazem sentido (os batizados serem “prejudicados” em relação aos não batizados) e não podiam dar-lhe esta desilusão agora, depois de tanto esforço da sua parte, sobretudo por causa de um erro burocrático e não dele. 
Foi um diálogo infrutífero – falei com uma parede de burocracia, intolerância e incompreensão. Até que, em tirada de despedida, me saltou a tampa e questionei: “Tem a certeza que era isto que faria o Papa Francisco no seu lugar?” Meia hora depois recebo um telefonema a dizer que afinal tinham conseguido dar a volta à questão e que o miúdo poderia comungar. Fez a Comunhão, mas a relação esfriou. Ele nunca mais quis ouvir falar de catequese, e eu também não.
“O que faria o Papa Francisco no seu lugar?” é a pergunta que deveria estar colada em letras garrafais em todas as sacristias do País: da igreja mais pequena ao Santuário de Fátima, passando pelos patriarcados e pela Conferência Episcopal Portuguesa. Se todos os responsáveis católicos sem exceção (do cardeal ou pároco da aldeia) se pautassem no seu dia a dia pela forma como Bergoglio atuaria, talvez não tivéssemos uma Igreja tão triste, fria, distante das pessoas e com um discurso tão desfasado e anacrónico [leia a reportagem de capa na edição impressa da VISÃO, assinada por António Marujo].
Francisco, este Papa extraordinário ( .....) , vale acima de tudo pelo exemplo inspirador de renovação que deve impor a toda a instituição. Tem todas as características de um grande líder político (embora ele recuse esse estatuto e a ideia de que é de esquerda, porque diz que tudo o que advoga está afinal nas escrituras) – humanismo, vontade de mudar, coragem, carisma e despojamento – e é isso que inquieta a ala conservadora da Igreja. Os mesmos que veem a homossexualidade como uma doença, que recusam dar a comunhão a pessoas divorciadas, que apontam o dedo em vez de integrar.
Francisco não será revolucionário ao ponto de mexer nas doutrinas católicas estruturantes do casamento, do aborto ou do papel da mulher que fazem parte da tradição milenar cristã, mas deixa esta ala cada vez mais insegura, num clima de desconforto que provavelmente não se sentia desde o Concílio Vaticano II nos anos 60.
( ... ) Aquele que numa das primeiras respostas aos jornalistas chocou meio mundo ao soltar um desinibido “quem sou eu para julgar?” a propósito da homossexualidade. Aquele que lava os pés a criminosos e batiza filhos de mães solteiras, que recusa mordomias e luxos (ou não fosse um jesuíta), que recuperou os conceitos originais de caridade, benevolência e graça. ( ... ). Possa a Igreja Portuguesa inspirar-se, aprender com ele e seguir também as suas pisadas.


Site VISAO, Mafalda Anjos
Francisco: revolucionário, ma non troppo

Em época de Natal, escrever sobre a aversão da Cúria Romana por Francisco seria, provavelmente, a maior honra que o octogenário Bergoglio receberia. Mas, parafraseando Mark Twain, a notícia da revolução iminente de Francisco é manifestamente exagerada.

O PÚBLICO dá-nos nota do recrudescimento de movimentações já conhecidas na Cúria Romana contra Francisco. A notícia, em si, não é nova, e também não creio que estejamos às portas de um “pontificídio”, sendo que a exposição pública de fracturas como estas dificulta quem suspira para que o único pulmão de Bergoglio depressa deixe de funcionar.

A Igreja Católica é um dos últimos exemplos de “instituição total” na acepção de Goffman e, a discussão sobre a sua abertura aos “novos tempos”, é velha de séculos. Como também, em nada é nova a existência de corrupção, mundanismo e politiquice no seio dos Cardeais e sua corte. A Igreja é obra imperfeita de Deus, constituída por homens – e muito poucas mulheres (pelo menos em lugar de mando). 

Bergoglio nunca foi propriamente conhecido por ser ultraliberal ou ultraconservador. Era tido como ajustado ao colapso de Bento XVI, incapaz de lidar com um Banco falido e instrumento de branqueamento, com os escândalos da pedofilia, com um clero cada vez mais faustoso, que encontrava em Ratzinger, sucessor no dicastério da Inquisição, um modelo de sapatos Prada. Necessitava a Igreja de reforçar a América Latina (dos poucos lugares do mundo onde cresce) e o Arcebispo de Buenos Aires surgia como um bom compromisso. Eram conhecidos os seus hábitos simples, mas também o seu não comprometimento do fundamental dos dogmas da fé.

Simplesmente, o agora Papa Francisco revelou-se mais autónomo do que se pensava. Iludiram-se os que consideravam que se deixaria deslumbrar pelas honrarias de ser um dos únicos monarcas absolutos reinantes, ainda por cima infalível em verdades de fé, sob pena de excomunhão de quem ousar discordar. Mas assim não foi. 

Ciente talvez do destino de alguém como João Paulo I, Francisco recusou os luxuosos apartamentos papais, fez mudanças profundas no Banco do Vaticano, alterou legislação interna de modo a punir mais gravemente crimes de “mitra branca”, exonerou e nomeou gente da sua confiança para congregações e dicastérios centrais. Quis saber tudo – ou quase tudo – sobre a pedofilia e já foi punindo alguns prelados que cometeram esse crime por acção ou omissão. Não viaja muito, mas quando o faz não deixa ninguém indiferente. Não vai em fenómenos de massa de uma religiosidade mais próxima de correntes evangelistas, como o provou o modo de peregrinar em Fátima. E nas conversas com os jornalistas no avião papal, aliviou o anátema sobre homossexuais, sobre divorciados e, não pondo em causa a negação do uso de anticoncepcionais não naturais, nas entrelinhas lê-se que há casos perfeitamente justificados para o “incumprimento”. Mantém-se implacável na defesa da vida, na política do aborto e na não ordenação de mulheres.

Por isso, bem vistas as coisas, Bergoglio não é nenhum revolucionário. Claro que é mais aberto à mudança que João Paulo II, dotado de enorme carisma, mas de grande conservadorismo, tendo sido exímio em aplicar o Concílio Vaticano II não o aplicando, com a ajuda imprescindível do, à época, Cardeal Ratzinger.

Interessa fazer de Francisco um grande revolucionário, um Satanás que dança tango, pois só assim se demoniza o actual Papa, facilitando os jogos de bastidores tendentes a prejudicar a Companhia de Jesus, a beneficiar os demais lóbis e a impor um provável regresso do rito tridentino e, com ele, uma Igreja que retroceda no que tem sido algum espírito reformista de Bergoglio. Penso que a tal não serão alheios movimentos políticos de direita radical, especialmente norte-americana, como não é coincidência que, os principais detractores de Francisco, sejam daquelas latitudes. O “tea party” tem influência católica, bem como movimentos como os húngaros, polacos ou austríacos. Para todos eles, uma Igreja mais voltada para o interior, menos interventiva na sociedade, que cale a violação dos direitos humanos e que se não meta em temas como as alterações climáticas, é uma Igreja mansa e, por isso, muito útil.

A grande questão é que julgo existir uma grande discrepância entre o que a Cúria parece considerar e aquilo que a generalidade dos crentes pretende para a sua Igreja. Estes querem um Francisco como aquilo que os seus apoiantes vendem: um modernizador sem comprometer o essencial da fé, um irmão compreensivo e aberto, tolerante e misericordioso; na verdade, um Papa mais próximo de Cristo. Ora, os interesses políticos no Vaticano não se compadecem com uma Igreja esposa de Cristo, cada vez mais feita à sua imagem e semelhança, mas com a manutenção de um certo “status quo” em que cada facção mantém o seu poder relativo. É evidente que os Cardeais que vivem longe da Cúria e outros prelados estarão próximos da verdade do Evangelho, mas dificilmente se sucumbirá às tentações ao viver na cidade-Estado. A magnífica série de Sorrentino, The Young Pope, é apodíctica neste domínio.

ANDRÉ LAMAS LEITE
Professor da Faculdade de Direito da Universidade do Porto

Jornal Público em 26 de Dezembro de 2017
IGREJA CATÓLICA: 
A guerra contra o Papa Francisco

A sua modéstia e humildade fizeram dele uma figura popular por todo o mundo. Mas, dentro da Igreja, as suas reformas têm enfurecido os conservadores e provocado uma revolta. O homem que há precisamente uma semana fez 81 anos e vive com apenas um pulmão, é o primeiro Papa não europeu dos tempos modernos e tem neste momento em mãos uma Igreja dividida. Um dos seus mais ferozes críticos, o cardeal Burke, é o mesmo que serviu de inspiração a uma série de proeminentes figuras laicas de direita nos Estados Unidos, de Pat Buchanan a

Steve Bannon ou Newt Gingrich.
ANDREW BROWN


O Papa Francisco é actualmente um dos homens mais odiados do mundo. E quem mais o odeia não são ateus, protestantes ou muçulmanos, mas alguns dos seus próprios seguidores. Fora da Igreja goza de grande popularidade, afirmando-se como uma figura de uma modéstia e uma humildade quase ostensivas. Desde o momento em que o cardeal Jorge Bergoglio se tornou Papa em 2013, os seus gestos prenderam a atenção do mundo: o novo Papa guiou um Fiat, transportou as próprias malas e pagou a conta em hotéis; sobre os homossexuais, perguntou: “Quem sou eu para julgar?”, e lavou os pés de refugiadas muçulmanas.

Dentro da Igreja, porém, Francisco tem desencadeado uma reacção feroz por parte dos mais conservadores, que temem que este novo espírito divida a Igreja ou até que a destrua. Este Verão, um proeminente clérigo inglês disse-me: “Mal podemos esperar que ele morra. É impublicável o que dizemos dele em privado. Sempre que dois padres se encontram, falam sobre o quão horrível Bergoglio é… ele é como Calígula: se tivesse um cavalo, fazia dele cardeal.” Claro que após dez minutos de repetidas críticas, acrescentou: “Não pode publicar nada disto, senão serei despedido.”
Esta mistura de ódio e temor é frequente entre os adversários do Papa. Francisco, o primeiro Papa não europeu dos tempos modernos e o primeiro Papa jesuíta da História, foi eleito como um outsiderdos poderes instituídos do Vaticano e era esperado que fizesse inimigos. Mas ninguém previu que fizesse assim tantos. Desde a sua rápida renúncia à pompa do Vaticano, que marcou desde logo a diferença na relação com os mais de três mil empregados civis do Vaticano, ao seu apoio aos migrantes, às suas críticas ao capitalismo global e, acima de tudo, à sua intenção de reexaminar as posições da Igreja relativamente ao sexo, o Papa tem vindo a escandalizar os reaccionários e os conservadores. A julgar pelos números das votações do último encontro mundial de bispos, quase um quarto do Colégio dos Cardeais — o mais alto organismo da organização clerical — está convencido de que o Papa se está a aproximar da heresia.
A questão crítica prende-se com a sua visão sobre o divórcio. Num corte com séculos, senão milénios, de doutrina católica, o Papa Francisco tem tentado encorajar os padres católicos a darem a comunhão a alguns casais divorciados ou casados em segundas núpcias e a famílias cujos pais não são casados. Os seus inimigos estão a tentar forçá-lo a abandonar essa ideia. Como ele se tem mantido firme e mostrado uma sóbria perseverança face ao crescente descontentamento, começam agora a preparar-se para a guerra. No ano passado, um cardeal, com o apoio de alguns colegas já aposentados, levantou a possibilidade de uma declaração formal de heresia — a rejeição intencional de uma doutrina estabelecida da Igreja, pecado punível com a excomunhão. Em Setembro, 62 católicos descontentes, nos quais se incluem um bispo já retirado e um antigo director do Banco do Vaticano, publicaram uma carta aberta em que apontam a Francisco sete acusações específicas de ensinamentos heréticos.
62católicos descontentes, nos quais se incluem um bispo e um antigo director do Banco do Vaticano, publicaram uma carta aberta em que apontam a Francisco sete acusações específicas de ensinamentos heréticos
Acusar um Papa em funções de heresia é o equivalente católico à opção nuclear. A doutrina afirma que o Papa não pode estar errado quando se pronuncia sobre questões centrais da fé; portanto, se está errado, não pode ser Papa. Por outro lado, se este Papa está certo, todos os seus antecessores têm de ter estado errados.
A discussão está particularmente envenenada porque assenta quase na totalidade em bases teóricas. Na prática, em quase todo o mundo, os casais que se divorciam e voltam a casar têm acesso à comunhão. O Papa Francisco não está a propor uma revolução, apenas o reconhecimento institucional de um sistema que já existe e que pode até ser essencial para a sobrevivência da Igreja. Se as regras fossem aplicadas à letra, nenhuma pessoa cujo casamento tivesse falhado poderia voltar a ter relações sexuais. Essa não é uma boa maneira de assegurar a existência de gerações futuras de católicos.
Mas, para os seus detractores, as reformas cautelosas de Francisco põem em causa a crença de que as verdades da Igreja são intemporais. Porque se não são, perguntam os conservadores, então qual o seu valor? A batalha sobre o divórcio e os novos casamentos põe em confronto duas ideias profundamente opostas sobre o papel da Igreja. A insígnia do Papa são duas chaves cruzadas, que representam as que Jesus terá supostamente dado a S. Pedro, e que simbolizam os poderes de unir e separar, ou seja, proclamar o que é pecado e o que é permitido. Mas qual dos poderes é hoje mais importante e mais urgente?

A hipótese de um cisma
A crise actual é a mais séria desde que as reformas liberais dos anos 1960 fizeram com que um grupo dissidente de conservadores da “linha dura” abandonasse a Igreja (o seu líder, o arcebispo francês Marcel Lefebvre, viria mais tarde a ser excomungado). Nos últimos anos, escritores conservadores têm repetidamente levantado a hipótese de um cisma. Em 2015, o jornalista americano Ross Douhat, um convertido ao catolicismo, escreveu um artigo para a revista Atlantic intitulado “Irá o Papa Francisco destruir a Igreja?”; num blogue na Spectator, o tradicionalista inglês Damian Thompson afirmou peremptoriamente que “o Papa Francisco está em guerra com o Vaticano. Se sair vencedor, a Igreja poderá desmoronar-se”. Segundo um arcebispo do Cazaquistão, as posições do Papa relativamente ao divórcio e à homossexualidade permitiram que o “fumo de Satã” envolvesse a Igreja.
A Igreja Católica passou grande parte do último século a lutar contra a revolução sexual, tal como havia lutado antes contra as revoluções democráticas do século XIX, e essa luta levou-a a ter de defender uma doutrina insustentável, pela qual toda a contracepção artificial é proibida, bem como qualquer relação sexual fora de um casamento eterno. Como o Papa Francisco reconhece, não é assim que as pessoas agem normalmente. E o clero também o sabe, mas é esperado que finja que não. Ou seja, a doutrina oficial não pode ser questionada, mas também não pode ser cumprida. Um dos lados terá de ceder e, quando tal acontecer, a explosão resultante poderá fracturar a Igreja.
Não deixa de ser curioso que os frequentes choques e ódios dentro da Igreja — resultantes das posições sobre as alterações climáticas, as migrações ou o capitalismo — tenham chegado a um ponto de não retorno numa enorme batalha sobre as implicações de uma única nota de rodapé de um texto intitulado “A Alegria do Amor” (ou, no original latim, Amoris Laetitia). A exortação, escrita por Francisco, é um sumário do debate corrente sobre a questão do divórcio e numa nota de rodapé o autor faz aparentemente uma leve afirmação de que os casais divorciados e que voltem a casar poderão, eventualmente, receber a comunhão.
Com mais de mil milhões de fiéis, a Igreja Católica é a maior organização global que o mundo alguma vez viu, e muitos dos seus seguidores são divorciados ou pais solteiros. Para realizar o seu trabalho por todo o mundo, a Igreja depende de trabalho voluntário, ou seja, se os comuns fiéis deixarem de acreditar no que estão a fazer, todo o sistema colapsa. Francisco sabe disso. Se não for capaz de conciliar teoria e prática, a Igreja pode assistir a uma debandada. Os seus oponentes também defendem que a Igreja enfrenta uma crise, mas a sua solução é a contrária. Para eles, a distância ente teoria e prática é exactamente o que dá valor e sentido à Igreja. Se tudo o que a Igreja tiver para oferecer for algo de que as pessoas não sentem necessidade de procurar, dizem os que se opõem a Francisco, então irá seguramente colapsar.
O Papa num momento de confissão na Praça de São Pedro. Francisco lembrou que “o confessionário não deve ser uma câmara de tortura, mas antes um ponto de encontro com a misericórdia do Senhor” OSSERVATORE ROMANO/REUTERS

Liberais e conservadores: uma definição falaciosa
Ninguém previu este confronto quando Francisco foi eleito em 2013. Uma das razões da sua escolha foi precisamente o objectivo de solucionar a rígida burocracia do Vaticano, tarefa há muito adiada. O cardeal Bergoglio, de Buenos Aires, foi eleito como um relativo outsider, o que à partida facilitaria a eliminação de algumas das forças de bloqueio comuns ao âmago da Igreja. Mas essa missão entrou rapidamente em rota de colisão com uma fractura ainda mais acrimoniosa dentro da Igreja, que é geralmente descrita como a batalha entre os “liberais”, como Francisco, e os “conservadores”, dos quais fazem parte os seus adversários. Contudo, essa é uma definição equívoca e falaciosa.
A disputa central põe em confronto os católicos que acreditam que a Igreja deve liderar a agenda do mundo e os que, por outro lado, defendem que são as circunstâncias mundiais que devem definir as posições da Igreja. Essas são, porém, as posições idealistas: no mundo real, qualquer católico será uma mistura dessas duas orientações, tendo, na maior parte dos casos, a predominância de uma delas.
Francisco é um puro exemplo de um católico extrovertido, ou “virado para fora”, especialmente se comparado com os seus antecessores imediatos. Os seus oponentes são os introvertidos. Para muitos, a primeira coisa que os atraiu na Igreja foi exactamente a sua distância relativamente às preocupações mundanas. Um número surpreendente dos mais proeminentes introvertidos são protestantes americanos convertidos, alguns impulsionados pela superficialidade dos recursos intelectuais com que foram educados, mas muito mais por um sentimento de que o enfraquecimento do protestantismo liberal se deve precisamente ao facto de ter deixado de ser uma alternativa à sociedade que o rodeia. Querem mistério e fervor, não senso comum estéril e sabedoria convencional. Nenhuma religião pode florescer sem tal impulso.

Mas também nenhuma religião global se pode contrapor totalmente ao mundo em que se encontra inserida. No início dos anos 1960, um encontro que durou três anos entre bispos de todos os quadrantes da Igreja, que ficou conhecido como o Segundo Concílio do Vaticano, ou Vaticano II, “abriu as janelas para o mundo”, nas palavras do Papa João XXIII, que o convocou, mas que morreu antes da sua conclusão.
O concílio renunciou ao anti-semitismo, abraçou a democracia, proclamou direitos humanos universais e aboliu, em larga escala, a missa em latim. Esta última medida, em particular, chocou os introvertidos. O escritor Evelyn Waugh, por exemplo, recusou-se a partir desse momento a participar numa missa em inglês. Para homens como ele, os rituais solenes de um serviço religioso realizado por um padre de costas para a congregação, falando inteiramente em latim e encarando Deus no altar, eram o próprio coração da Igreja — uma janela para a eternidade reencenada a cada representação. O ritual tinha uma posição central na Igreja, de uma forma ou de outra, desde a sua fundação.
Simbolicamente, a mudança provocada pela nova liturgia — a troca do padre introvertido que encarava Deus no altar pela figura extrovertida virada para a congregação — foi imensa. Alguns conservadores ainda hoje não se reconciliaram com a reorientação, entre os quais, o cardeal guineense Robert Sarah, que tem sido apontado pelos introvertidos como possível sucessor de Francisco, e o cardeal americano Raymond Burke, que tem emergido como o mais veemente opositor público de Francisco. Nas palavras da jornalista católica inglesa Margaret Hebblethwaite, uma fervorosa apoiante do Papa Francisco, a crise actual é nada menos que “o regresso do Vaticano II”.
“Devemos ser inclusivos e acolher tudo o que é humano”, afirmou Sarah num encontro no Vaticano no ano passado, numa condenação das propostas de Francisco, “mas o que vem do inimigo não pode nem deve ser assimilado. Não podemos seguir Cristo e Belial! As ideologias ocidentais da homossexualidade e do aborto e o extremismo islâmico representam nos dias de hoje o que o nazismo, o fascismo e o comunismo representaram no século XX”.
Ressurgimento pentecostal
Nos anos imediatamente a seguir ao concílio, freiras deitaram fora os seus hábitos, padres descobriram as mulheres (mais de cem mil deixaram o sacerdócio para se casarem) e teólogos livraram-se das correntes da ortodoxia introvertida. Após 150 anos de resistência e de rejeição do mundo exterior, a Igreja deu por si completamente envolvida por esse mundo, até ao ponto em que os introvertidos temeram que o edifício estivesse em risco de se desmoronar.
A afluência às igrejas caiu a pique no mundo ocidental, tal como aconteceu noutras denominações. Nos Estados Unidos, 55% dos católicos iam regularmente à missa em 1965; em 2000, esse número era de apenas 22% [em Portugal, segundo dados do Vaticano, em 2015, existiam 9,183 milhões de católicos numa população de 10,34 milhões de pessoas, correspondendo a uma percentagem de 88,7%, mais quatro décimas do que em 2010]. Em 1965, foram baptizados um milhão e trezentos mil bebés nos EUA; em 2016, apenas 670 mil. Se esta tendência é ou não fruto de uma relação causa/efeito, é algo que continua a ser ferozmente discutido. Os introvertidos põem a culpa no abandono das verdades universais e das práticas tradicionais; os extrovertidos acham que as mudanças na Igreja não foram suficientes ou suficientemente rápidas.
Em 1966, um comité papal de 69 membros, no qual se incluíam sete cardeais e 13 médicos, bem como laicos e até algumas mulheres, votou esmagadoramente a favor do levantamento da proibição do uso de contracepção artificial, mas o Papa Paulo VI revogou a votação em 1968. Não podia admitir que os seus predecessores estivessem errados e os protestantes certos. Para uma inteira geração de católicos, esta disputa passou a simbolizar a resistência da Igreja à mudança. Nos países em desenvolvimento, a Igreja Católica foi em grande parte ultrapassada por um ressurgimento pentecostal, que oferecia tanto a encenação como estatuto para os laicos e para as mulheres.
Os introvertidos tiveram a sua vingança aquando da eleição do Papa (agora Santo Papa) João Paulo II, em 1978. A sua Igreja polaca era caracterizada pela oposição ao mundo exterior e aos seus líderes desde que os nazis e os comunistas dividiram o país em 1939. João Paulo II era um homem impressionante, dotado de uma tremenda energia e força de vontade. Era também profundamente conservador em questões de moralidade sexual e, enquanto cardeal, tinha apresentado a justificação intelectual para a proibição do controlo de natalidade. Desde o momento da sua eleição que começou a moldar a Igreja à sua imagem. Mesmo que não conseguisse imprimir-lhe o seu dinamismo e vontade, parecia que iria conseguir purgá-la da extroversão e uma vez mais estancar as correntes do mundo secular.
Ross Douthat, jornalista católico, foi das poucas pessoas do lado dos introvertidos a disponibilizarem-se a falar abertamente sobre o conflito actual. Na sua juventude foi um dos convertidos atraídos para a Igreja de João Paulo II. Afirma hoje que “a Igreja pode ser uma barafunda, mas o importante é que o centro seja sólido e tudo pode ser reconstruído a partir do centro. Ser católico é ter a garantia da continuidade no centro e com isso a esperança do restabelecimento da ordem católica”.
João Paulo II teve o cuidado de nunca repudiar as palavras do Vaticano II, mas fez o possível para as esvaziar do seu espírito extrovertido. Começou por impor uma disciplina férrea ao clero e aos teólogos. Tentou também tornar o mais difícil possível a renúncia dos padres para poderem casar. A sua aliada nesse objectivo foi a Congregação para a Doutrina da Fé, ou CDF, antes conhecida como o Santo Ofício. Institucionalmente, a CDF é a mais introvertida de todos os “ministérios” do Vaticano (ou “dicastérios”, como são conhecidos desde o tempo do Império Romano; é um detalhe que sugere o peso da inércia e da experiência institucional — se o nome era bom para Constantino, porquê mudá-lo?).
Para a CDF, é axiomático que o papel da Igreja é ensinar o mundo, não aprender com ele. Tem uma longa tradição de punir teólogos que discordam: houve casos de proibição de publicações e de despedimentos de universidades.
Ainda no início do pontificado de João Paulo II, a CDF publicou Donum Veritatis (“O Dom da Verdade”), documento que explica que todos os católicos devem praticar a “submissão da vontade e do intelecto” aos ensinamentos do Papa, mesmo que não sejam infalíveis; e que os teólogos, mesmo que possam estar em desacordo e manifestá-lo aos seus superiores, nunca o devem fazer em público. Estas palavras foram usadas como ameaça, às vezes até como arma, contra qualquer pessoa suspeita de dissidência liberal. Francisco, contudo, virou estes poderes contra os que tinham sido os seus maiores defensores. Os padres, os bispos e até os cardeais estão ao serviço do Papa e podem ser demitidos a qualquer momento. Sob Francisco, os conservadores aprenderam essa lição: pelo menos três teólogos foram demitidos da CDF. Os jesuítas exigem disciplina.
Em 2013, pouco tempo após a sua eleição e quando estava ainda num estado de quase universal aclamação pela ousadia e simplicidade dos seus gestos — tinha-se mudado para um par de singelos quartos no Vaticano, por oposição aos sumptuosos apartamentos do Estado usado pelos seus antecessores —, Francisco expurgou uma pequena ordem religiosa que se devotava à prática da missa tridentina, dita em latim.
Os Frades Franciscanos da Imaculada, grupo com cerca de 600 membros, homens e mulheres, já tinham sido colocados sob investigação por uma comissão em Junho de 2012, no papado de Bento XVI. Eram acusados de combinar uma cada vez mais extremista política de direita com a devoção à missa tridentina. (Esta combinação, que surge frequentemente associada a declarações de ódio ao “liberalismo”, tinha vindo também a espalhar-se online nos EUA e no Reino Unido, como é exemplo o blogue do Daily Telegraph Holy Smoke, editado por Damian Thompson.)
Quando a comissão apresentou as suas descobertas em 2013, a reacção de Francisco chocou os conservadores. Proibiu os frades de usarem a missa tridentina em público e fechou o seu seminário. Continuaram a poder formar novos padres, mas não segregados do resto da igreja. Mais, tomou estas decisões directamente, sem passar pelo sistema judicial interno do Vaticano, à altura dirigido pelo cardeal Burke. No ano seguinte, Francisco demitiu Burke do seu poderoso cargo no sistema judicial do Vaticano. Nesse momento, ganhou um inimigo implacável.
Burke, um americano robusto dado a vestes bordadas a renda e, em ocasiões formais, a uma capa de cerimónias escarlate tão comprida que precisa de ser carregada por pajens, era um dos mais conspícuos reaccionários do Vaticano. Em modos e em doutrina, representa uma longa tradição de pesos-pesados americanos do poder do catolicismo de etnia branca. A hierática, patriarcal e conflituosa igreja da missa tridentina é o seu ideal, e ao qual parecia que a Igreja estava lentamente a voltar sob o comando de João Paulo II e Bento VXI — até que Francisco começou o seu trabalho.
A combinação de anticomunismo, orgulho étnico e ódio ao feminismo do cardeal Burke inspirou uma série de proeminentes figuras laicas de direita nos Estados Unidos, de Pat Buchanan a Bill O’Reilly e a Steve Bannon, bem como outros intelectuais católicos menos famosos, como Michael Novak, que têm batalhado incansavelmente a favor das guerras americanas no Médio Oriente e da perspectiva republicana sobre os mercados livres.
Foi o cardeal Burke quem em 2014 convidou Bannon, já na altura a mente por trás do Breitbart News, a dirigir-se a uma conferência no Vaticano via vídeo emitido na Califórnia. O discurso de Bannon foi apocalíptico, incoerente e historicamente excêntrico. Mas não foi inocente o seu chamamento para uma guerra santa: a Segunda Guerra Mundial, afirmou, foi na realidade “o Ocidente judeu-cristão contra os ateus” e agora a civilização está “nas etapas iniciais de uma guerra global contra o fascismo islâmico… um conflito brutal e sangrento… que irá erradicar completamente tudo o que nos foi legado nos últimos 2000, 2500 anos… se as pessoas nesta sala, as pessoas da Igreja, não… lutarem pelas nossas crenças, contra esta nova barbaridade que está a surgir”.
Tudo nesse discurso é um anátema para Francisco. A sua primeira visita oficial fora de Roma, em 2013, foi à ilha de Lampedusa, que se tinha tornado o ponto de chegada de dezenas de milhares de desesperados migrantes vindos do Norte de África. Como ambos os seus antecessores, opõe-se firmemente às guerras no Médio Oriente, embora o Vaticano tenha apoiado relutantemente a extirpação do califado do Estado Islâmico. Opõe-se à pena de morte e despreza e condena o capitalismo americano: depois de marcar o seu apoio aos migrantes e aos homossexuais, a primeira grande declaração política do seu pontificado foi uma encíclica, dirigida a toda a Igreja, que condenava ferozmente o funcionamento dos mercados globais.
“Algumas pessoas continuam a defender teorias ‘conta-gotas’ [trickle-down, no original], que assumem que o crescimento económico, encorajado por um mercado livre, irá inevitavelmente resultar em maior justiça e inclusividade pelo mundo. Tal crença, que nunca foi sustentada pelos factos, exprime uma confiança arrogante e ingénua na bondade dos que exercem o poder económico e no funcionamento sacralizado do sistema económico prevalente. Entretanto, os excluídos continuam à espera.”
Acima de tudo, Francisco está do lado dos imigrantes — ou emigrantes, como ele os vê — expulsos de suas casas por um capitalismo infinitamente voraz e destrutivo, que pôs em marcha mudanças climáticas catastróficas. Nos Estados Unidos, esta é uma questão racializada e profundamente politizada. Os evangélicos que votaram em Donald Trump e no seu muro são esmagadoramente brancos, tal como as lideranças da Igreja Católica americana. Mas cerca de um terço dos laicos são hispânicos, proporção que está a aumentar. Em Setembro, Bannon afirmou, em entrevista ao 60 Minutes da CBS, que os bispos americanos eram favoráveis à imigração em massa apenas porque isso ajuda as suas congregações — embora isso vá mais longe do que até os bispos mais à direita seriam capazes de dizer publicamente.
Quando Trump anunciou pela primeira vez que iria construir um muro para impedir a entrada de imigrantes, Francisco esteve muito perto de negar que o então candidato pudesse ser cristão. Na visão de Francisco sobre as ameaças à família, os lavabos transgéneros não são o problema mais urgente, como alguns activistas “guerreiros” culturais querem fazer crer. O que destrói as famílias, escreveu, é um sistema económico que força milhões de famílias pobres a separarem-se na sua busca por trabalho.
Uma “torrente de corrupção”
Além de lidar com os praticantes da velha escola da missa tridentina em latim, Francisco deu início a uma ampla ofensiva contra a velha guarda no interior do Vaticano. Cinco dias após a sua eleição em 2013, convocou o cardeal hondurenho Óscar Rodríguez Maradiaga e comunicou-lhe que iria ser coordenador de um grupo de nove cardeais espalhados pelo globo cuja missão era limpar a casa. Foram todos escolhidos pela sua energia e pelo facto de terem estado, no passado, em conflito com o Vaticano. Foi uma medida popular em todo o lado, menos em Roma.
João Paulo II passou a última década da sua vida cada vez mais incapacitado pela doença de Parkinson, e a energia que lhe restava não era gasta em querelas burocráticas. A Cúria, nome por que é conhecida a organização burocrática do Vaticano, foi ganhando cada vez mais poder, estagnada e corrupta. Muito poucas medidas foram tomadas contra os bispos que protegeram os clérigos que abusaram de crianças. O Banco do Vaticano era tristemente célebre pelos serviços que oferecia para lavagem de dinheiro. Os processos de canonização — algo que João Paulo II fez a um ritmo sem precedentes — tinham-se tornado uma fraude extremamente cara: o jornalista italiano Gianluigi Nuzzi estimou que o preço de tabela de uma canonização andaria à volta dos 500 mil euros por auréola. As finanças do próprio Vaticano estavam uma desgraça e até Francisco fez referência a “uma torrente de corrupção” na Cúria.
O estado pútrido da Cúria era bem conhecido, mas nunca discutido em público. Ao fim de nove meses no cargo, Francisco disse a um grupo de freiras que “na Cúria também há pessoas virtuosas, a sério, há lá pessoas santas” — de tal maneira assumia que a sua audiência de freiras ficaria surpreendida por saber disso.
Afirmou que a Cúria “toma conta e cuida dos interesses do Vaticano, que são, na sua maior parte, interesses temporais. A visão ‘vaticanocêntrica’ negligencia o mundo à nossa volta. Eu não partilho dessa visão, e farei tudo o que estiver ao meu alcance para a mudar”. Declarou ainda ao jornal italiano La Repubblica: “Várias vezes os chefes da Igreja foram narcisistas, lisonjeados e empolgados pelos seus cortesãos. A corte é a lepra do papado.”
“O Papa nunca falou bem dos padres”, diz o padre que mal pode esperar que ele morra. “É um jesuíta anticlerical. Lembro-me bem dessas ideias nos anos 70. Costumavam dizer: ‘Não me chames padre, chama-me Manuel’ — esse tipo de parvoíces — e nós, o oprimido clero paroquial, sentimos que nos tiraram o chão.”
Em Dezembro de 2015, Francisco fez o seu tradicional discurso de Natal à Cúria e não poupou nas palavras: acusou-a de arrogância, de “Alzheimer espiritual”, de “hipocrisia típica dos medíocres e progressivo vazio espiritual que não pode ser preenchido com diplomas académicos”, bem como de vão materialismo e gosto pela bisbilhotice e maldizer — não é o tipo de coisa que se quer ouvir do chefe na festa de Natal da empresa.
Contudo, quatro anos decorridos sobre o início do seu papado, a resistência passiva do Vaticano parece estar a levar a melhor sobre a energia de Francisco. Em Fevereiro deste ano, apareceram da noite para o dia, nas ruas de Roma, posters que perguntavam: “Francisco, onde está a tua misericórdia?”, atacando-o pela maneira como tratou o cardeal Burke. Este episódio só pode ter sido obra de elementos descontentes do Vaticano, e é um sinal inequívoco de uma teimosa recusa em entregar poderes ou privilégios aos reformistas.
As igrejas do mundo ocidental estão cheias de divorciados
Esta batalha, porém, tem sido ofuscada, tal como todas as outras, pelas lutas internas relativamente à moralidade sexual. A disputa sobre o divórcio e os novos casamentos centra-se em dois factos. Primeiro, que a doutrina da Igreja Católica não mudou em quase dois milénios — o casamento é eterno e indissolúvel; isso é claro como água. Mas também o é o segundo facto: que os católicos se divorciam e voltam a casar aproximadamente ao mesmo ritmo que o resto da população e, quando o fazem, não vêem nada de imperdoável nisso. Portanto, as igrejas do mundo ocidental estão cheias de divorciados e de casais em segundas núpcias, que comungam com todos os outros, muito embora tanto eles como os seus padres saibam que tal não é permitido.
Os ricos e os poderosos têm desde sempre sabido explorar lacunas. Quando querem deixar uma esposa e voltar a casar, um bom advogado consegue sempre arranjar maneira de provar que o primeiro casamento foi um erro e não algo consumado no espírito que a Igreja exige, e assim haver razão para que seja apagado dos registos — ou, em jargão, anulado. Isto aplica-se especialmente a conservadores: Steve Bannon conseguiu divorciar-se de todas as três mulheres que teve, mas o exemplo contemporâneo mais escandaloso talvez seja o de Newt Gingrich, que liderou a conquista republicana do Congresso nos anos 1990 e que desde então se reinventou como aliado de Trump. Gingrich deixou a primeira mulher quando esta estava a ser tratada a um cancro e, enquanto estava casado com a segunda mulher, teve uma relação extraconjugal de oito anos com Callista Bisek, uma católica devota, antes de casar com ela pela Igreja — Callista foi a pessoa indicada para o cargo de nova embaixadora de Donald Trump no Vaticano.
A doutrina sobre o casamento após o divórcio não é a única maneira pela qual a doutrina sexual católica nega a realidade em que os laicos vivem, mas é a que causa mais danos. A proibição da contracepção é simplesmente ignorada por todos, em todos os sítios onde é legal. A hostilidade relativamente aos homossexuais é mitigada pelo facto geralmente reconhecido de que grande parte dos clérigos do mundo ocidental é gay e que alguns deles são bem-sucedidos celibatários. A rejeição do aborto não é um problema onde o aborto é legal e, de qualquer forma, não é uma questão particular da Igreja Católica. Mas a recusa em reconhecer segundos casamentos, a não ser que o casal faça votos de nunca ter relações sexuais, faz ressalvar o absurdo que é ter uma casta de homens celibatários a regulamentar a vida das mulheres.
Em 2015 e 2016, Francisco convocou duas grandes conferências (ou sínodos) de bispos de todo o mundo para discutir estes assuntos. Sabia que não conseguiria avançar sem um consenso alargado. Manteve-se em silêncio e encorajou os bispos a debaterem, mas rapidamente se tornou notório que era a favor de um considerável afrouxamento da disciplina à volta da comunhão após um segundo casamento. Dado que, de qualquer maneira, é isso que acontece na prática, torna-se difícil para quem está de fora entender o ardor que o assunto desperta.
“O que me interessa é a teoria”, diz o pároco inglês que confessa o seu ódio por Francisco. “Na minha paróquia há imensos divorciados e casais que voltaram a casar, mas muito deles, se soubessem que o primeiro cônjuge tinha morrido, iam a correr fazer um casamento na igreja. Conheço muitos homossexuais que fazem todo o tipo de coisas que são erradas, mas sabem que não deviam ser assim. Somos todos pecadores, mas temos de manter a integridade intelectual da fé católica.”
Com esta mentalidade, o facto de que o mundo rejeita a doutrina serve apenas para provar como está certa. “A Igreja Católica deve ser contracultura na ressaca da revolução sexual”, afirma Ross Douthat. “A Igreja Católica é o último lugar restante do mundo ocidental que defende que o divórcio é uma coisa má.”
Para Francisco e os seus apoiantes, tudo isso é irrelevante. Francisco diz que a Igreja deve ser um hospital ou um posto de primeiros socorros. As pessoas que se divorciaram não precisam que lhes digam que o divórcio é mau, precisam de recuperar e de refazer as suas vidas. A Igreja deve apoiá-las e mostrar misericórdia.
No primeiro sínodo, em 2015, esta era ainda uma visão minoritária. Foi preparado um documento liberal, que foi rejeitado pela maioria. Um ano depois, os conservadores estavam em clara minoria, mas a sua determinação era grande. O próprio Francisco escreveu um sumário das deliberações em “A Alegria do Amor”. É um documento longo, reflectivo e cuidadosamente ambíguo. A dinamite está escondida na nota 351 do capítulo 8 e assumiu uma imensa importância nas convulsões subsequentes.
A nota encontra-se anexada a uma passagem que vale a pena citar, tanto pelo que diz como pela maneira como o diz. O que diz é claro: algumas pessoas que vivem em segundos casamentos (ou em uniões de facto) “podem viver na graça de Deus, podem amar e podem também crescer na vida da graça e da caridade, e para tal podem receber a ajuda da Igreja”.
Mesmo a nota de rodapé, onde se lê que tais casais podem receber a comunhão se tiverem confessado os seus pecados, aborda o assunto com circunspecção: “Em certos casos, isto poderá incluir a ajuda dos sacramentos.” Consequentemente, “quero lembrar aos padres que o confessionário não deve ser uma câmara de tortura, mas antes um ponto de encontro com a misericórdia do Senhor”. E ainda: “Quero também salientar que a eucaristia não é um prémio para os perfeitos, mas um poderoso medicamento e alimento para os mais fracos.”
“Ao vermos tudo a preto e branco”, acrescenta Francisco, “às vezes fechamos o caminho da graça e do crescimento.”
Foi esta pequena passagem que teve o condão de unir todas as revoltas contra a sua autoridade. Ninguém consultou os laicos para saber o que pensam sobre o assunto e, de qualquer forma, as suas opiniões não são do interesse do partido dos introvertidos. Mas, entre os bispos, entre um quarto e um terço estão a resistir passivamente à mudança, e uma pequena minoria está a fazê-lo activamente.
O líder dessa facção é o grande inimigo de Francisco, o cardeal Burke. Primeiro demitido do seu cargo no tribunal do Vaticano e depois da comissão litúrgica, acabou no conselho de supervisão da Ordem de Malta — um organismo de caridade administrado pelas antigas aristocracias católicas da Europa. No Outono de 2016, demitiu o director da Ordem por supostamente ter permitido que freiras distribuíssem preservativos na Birmânia, algo que as freiras fazem regularmente nos países em desenvolvimento para ajudar a proteger as mulheres vulneráveis. O director demitido apelou para o Papa.
O resultado foi que Francisco readmitiu a pessoa que havia sido demitida e designou outro responsável para assumir a maior parte dos deveres de Burke. A decisão foi um castigo por Burke ter falsamente afirmado que o Papa tinha estado do seu lado na querela original.
Entretanto, Burke tinha aberto uma nova frente de batalha, que chegou o mais perto possível de acusar o Papa de heresia. Juntamente com três outros cardeais, dois dos quais morreram desde então, Burke elaborou uma lista de quatro perguntas destinadas a estabelecer se Amoris Laetitia violava a doutrina anterior. A lista foi formalmente enviada a Francisco, que a ignorou. Após a sua demissão, Burke tornou as questões públicas e afirmou estar preparado para emitir uma declaração formal de que o Papa era herege se as respostas não fossem do seu agrado.
É óbvio que Amoris Laetitia representa um corte com a doutrina passada. É um exemplo da Igreja a aprender com a experiência. Mas isso é difícil de assimilar para os conservadores: historicamente, estas rupturas doutrinárias só aconteceram em períodos de convulsão e separadas por séculos. Esta chega 60 anos apenas após a última irrupção de extroversão, com o Vaticano II, e 16 anos depois de João Paulo II ter reiterado a velha linha dura.
“O que significa que um Papa contradiga um Papa anterior?”, pergunta Douthat. “É incrível o quão perto está Francisco de entrar em conflito com os seus antecessores imediatos. Foi só há 30 anos que João Paulo II estabeleceu em Veritatis Splendor a linha que Amoris Laetitia parece contradizer.”
O Papa Francisco está deliberadamente a contradizer um homem que ele próprio proclamou como santo. Isso não é um problema para ele. Mas o facto de ser mortal pode vir a ser. Quanto mais Francisco se afastar da linha dos seus antecessores, mais fácil será para o seu sucessor reverter a sua. Embora a doutrina católica vá naturalmente mudando, a sua força depende da ilusão de que tal não acontece. Os pés podem tremer sob a batina, mas a túnica nunca deve oscilar. Contudo, isso também significa que as mudanças que ocorreram podem ser revertidas sem nenhum movimento oficial. Foi assim que João Paulo II respondeu ao Vaticano II. Para garantir que as mudanças de Francisco perdurarão, a Igreja tem de as aceitar. E isso é uma questão que não será respondida no seu tempo de vida. Tem hoje 81 anos e apenas um pulmão. Os seus oponentes podem estar a rezar pela sua morte, mas ninguém pode saber se o seu sucessor tentará contradizê-lo — e o futuro da Igreja Católica paira agora sobre essa dúvida.

Exclusivo The Guardian/ PÚBLICO. Tradução de António Domingos

24 de Dezembro de 2017