Francisco: revolucionário, ma non troppo

Em época de Natal, escrever sobre a aversão da Cúria Romana por Francisco seria, provavelmente, a maior honra que o octogenário Bergoglio receberia. Mas, parafraseando Mark Twain, a notícia da revolução iminente de Francisco é manifestamente exagerada.

O PÚBLICO dá-nos nota do recrudescimento de movimentações já conhecidas na Cúria Romana contra Francisco. A notícia, em si, não é nova, e também não creio que estejamos às portas de um “pontificídio”, sendo que a exposição pública de fracturas como estas dificulta quem suspira para que o único pulmão de Bergoglio depressa deixe de funcionar.

A Igreja Católica é um dos últimos exemplos de “instituição total” na acepção de Goffman e, a discussão sobre a sua abertura aos “novos tempos”, é velha de séculos. Como também, em nada é nova a existência de corrupção, mundanismo e politiquice no seio dos Cardeais e sua corte. A Igreja é obra imperfeita de Deus, constituída por homens – e muito poucas mulheres (pelo menos em lugar de mando). 

Bergoglio nunca foi propriamente conhecido por ser ultraliberal ou ultraconservador. Era tido como ajustado ao colapso de Bento XVI, incapaz de lidar com um Banco falido e instrumento de branqueamento, com os escândalos da pedofilia, com um clero cada vez mais faustoso, que encontrava em Ratzinger, sucessor no dicastério da Inquisição, um modelo de sapatos Prada. Necessitava a Igreja de reforçar a América Latina (dos poucos lugares do mundo onde cresce) e o Arcebispo de Buenos Aires surgia como um bom compromisso. Eram conhecidos os seus hábitos simples, mas também o seu não comprometimento do fundamental dos dogmas da fé.

Simplesmente, o agora Papa Francisco revelou-se mais autónomo do que se pensava. Iludiram-se os que consideravam que se deixaria deslumbrar pelas honrarias de ser um dos únicos monarcas absolutos reinantes, ainda por cima infalível em verdades de fé, sob pena de excomunhão de quem ousar discordar. Mas assim não foi. 

Ciente talvez do destino de alguém como João Paulo I, Francisco recusou os luxuosos apartamentos papais, fez mudanças profundas no Banco do Vaticano, alterou legislação interna de modo a punir mais gravemente crimes de “mitra branca”, exonerou e nomeou gente da sua confiança para congregações e dicastérios centrais. Quis saber tudo – ou quase tudo – sobre a pedofilia e já foi punindo alguns prelados que cometeram esse crime por acção ou omissão. Não viaja muito, mas quando o faz não deixa ninguém indiferente. Não vai em fenómenos de massa de uma religiosidade mais próxima de correntes evangelistas, como o provou o modo de peregrinar em Fátima. E nas conversas com os jornalistas no avião papal, aliviou o anátema sobre homossexuais, sobre divorciados e, não pondo em causa a negação do uso de anticoncepcionais não naturais, nas entrelinhas lê-se que há casos perfeitamente justificados para o “incumprimento”. Mantém-se implacável na defesa da vida, na política do aborto e na não ordenação de mulheres.

Por isso, bem vistas as coisas, Bergoglio não é nenhum revolucionário. Claro que é mais aberto à mudança que João Paulo II, dotado de enorme carisma, mas de grande conservadorismo, tendo sido exímio em aplicar o Concílio Vaticano II não o aplicando, com a ajuda imprescindível do, à época, Cardeal Ratzinger.

Interessa fazer de Francisco um grande revolucionário, um Satanás que dança tango, pois só assim se demoniza o actual Papa, facilitando os jogos de bastidores tendentes a prejudicar a Companhia de Jesus, a beneficiar os demais lóbis e a impor um provável regresso do rito tridentino e, com ele, uma Igreja que retroceda no que tem sido algum espírito reformista de Bergoglio. Penso que a tal não serão alheios movimentos políticos de direita radical, especialmente norte-americana, como não é coincidência que, os principais detractores de Francisco, sejam daquelas latitudes. O “tea party” tem influência católica, bem como movimentos como os húngaros, polacos ou austríacos. Para todos eles, uma Igreja mais voltada para o interior, menos interventiva na sociedade, que cale a violação dos direitos humanos e que se não meta em temas como as alterações climáticas, é uma Igreja mansa e, por isso, muito útil.

A grande questão é que julgo existir uma grande discrepância entre o que a Cúria parece considerar e aquilo que a generalidade dos crentes pretende para a sua Igreja. Estes querem um Francisco como aquilo que os seus apoiantes vendem: um modernizador sem comprometer o essencial da fé, um irmão compreensivo e aberto, tolerante e misericordioso; na verdade, um Papa mais próximo de Cristo. Ora, os interesses políticos no Vaticano não se compadecem com uma Igreja esposa de Cristo, cada vez mais feita à sua imagem e semelhança, mas com a manutenção de um certo “status quo” em que cada facção mantém o seu poder relativo. É evidente que os Cardeais que vivem longe da Cúria e outros prelados estarão próximos da verdade do Evangelho, mas dificilmente se sucumbirá às tentações ao viver na cidade-Estado. A magnífica série de Sorrentino, The Young Pope, é apodíctica neste domínio.

ANDRÉ LAMAS LEITE
Professor da Faculdade de Direito da Universidade do Porto

Jornal Público em 26 de Dezembro de 2017

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